Acordo da Organização Mundial do Comércio sobre os subsídios à pesca: algo cheira mal

“O mundo provavelmente testemunhará maior esgotamento dos estoques pesqueiros e degradação dos recursos marinhos, o que prejudicará a subsistência dos pescadores tradicionais e comunidades costeiras.”

INTRODUÇÃO

Depois de muitos anos de negociações, a 12ª Conferência Ministerial (MC12) da Organização Mundial do Comércio (OMC), que aconteceu entre 12 e 17 de junho de 2022, adotou um Acordo de Subsídios à Pesca enfraquecido. Ele foi divulgado como um acordo para salvar os peixes no mundo todo e apoiar uma transição acelerada para a sustentabilidade. Contudo, essas noções pouco se refletiram no projeto de Acordo que foi submetido à consideração dos Ministros na Conferência, bem como no Acordo Provisório adotado. Negociações continuam na OMC para chegar a um acordo final, que deverá cumprir totalmente a Meta de Desenvolvimento Sustentável (MDS) 14.6.

Os governos continuam favorecendo a pesca industrial, que é vista como mais rentável do que a pesca artesanal. No mundo todo, a maior parte dos subsídios (81%) são fornecidos à pesca industrial na forma de incentivos para aumento de capacidade, sendo que os subsídios para a compra de combustível costumam ser os mais altos. Se a situação atual persistir, a pesca industrial continuará contribuindo com a destruição dos estoques de peixes em detrimento da pesca artesanal, ameaçando o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) de pescadores e pescadoras, além de outros direitos relacionados, como o direito ao trabalho. Isso poderá exacerbar ainda mais a marginalização política e econômica dos pescadores artesanais. São eles que fornecem uma importante fonte de proteína para muitos segmentos marginalizados da população mundial.

Este artigo busca detalhar os conteúdos do Acordo de Subsídios à Pesca da OMC com enfoque específico nos subsídios que foram proibidos, e conclui de que formas o Acordo poderá impactar os pescadores artesanais.

 

 

O projeto de Acordo para Subsídios à Pesca que foi submetido à consideração dos Ministros na MC12 continha três categorias de subsídios proibidos: 1) subsídios que ‘contribuam’ para a pesca ilegal, não informada e não regulamentada (IUU, na sigla em inglês); 2) subsídios para estoques sob efeito da sobrepesca e 3) subsídios que contribuam para a sobrepesca e a supercapacidade. Discutiremos cada um deles.

1) Pesca ilegal, não declarada e não regulamentada
A pesca INN (ilegal, não declarada e não regulamentada) é uma das principais causas da sobrepesca e pode ser testemunhada no mundo todo. A primeira categoria se refere à proibição de subsídios para uma embarcação ou operador caso se determine que eles estejam engajados na pesca INN. Esse tipo de proibição é de espectro limitado. Primeiro, ela não disciplina os subsídios que ‘contribuem’ para a pesca INN. Em vez disso, é acionada depois que a pesca INN já aconteceu. Em segundo lugar, a proibição se aplica a uma embarcação ou operador específicos. Em terceiro, a maioria dos países em desenvolvimento não tem os recursos necessários para cumprir as determinações contra a pesca INN, tais como helicópteros para monitorar suas próprias águas, inspeção a bordo e quarentena de embarcações. Em quarto lugar, mesmo que um processo legal doméstico seja capaz de determinar que uma embarcação estava engajada na pesca INN, o país em que isso acontece deve também cumprir com várias exigências processuais diante do Estado de bandeira da embarcação (ou seja, o país no qual ela está registrada e que tem autoridade sobre ela em alto mar). Isso inclui ter de fornecer informações, permitir consultas, considerar os comentários do Estado de bandeira e notificar a OMC. Essas exigências também se aplicam caso se conheça o país que subsidia essa pesca, ou seja, a maior parte das exigências se aplica duas vezes. Em quinto lugar, a proibição de subsídio é temporária. O país que subsidia tem o direito de limitar o período de proibição do subsídio com base em sua avaliação da gravidade do crime, e depois desse período pode continuar subsidiando. De qualquer forma, a proibição do subsídio dura tanto quanto a sanção aplicada. No caso de sanções de curta duração, como multas (que podem ser pagas em pouco tempo), a proibição de subsídio também dura pouco.

Nessa categoria há também uma proibição adicional para “atividades pesqueiras relacionadas ao apoio à pesca INN”, que foi inserida a pedido dos Estados Unidos da América (EUA), depois que estes apresentaram sua proposta sobre “trabalho forçado”. As atividades relacionadas à pesca incluem o processamento de pescados em terra. Sempre há o risco de que uma fábrica de processamento compre peixes de uma embarcação ou operador engajado na pesca INN, ou que estes não sigam as regulações INN de certo membro da OMC, por exemplo, em relação às exigências de documentação. Por outro lado, é mais difícil obter a confirmação de que uma determinada embarcação esteve engajada na pesca IUU, o que dificulta a proibição dos subsídios. Isso pode, na verdade, tornar o processamento de pescados a bordo em grande escala mais competitivo do que o processamento em terra, e as condições de trabalho nas embarcações são, sem dúvida, mais difíceis do que numa fábrica. Assim, uma consequência imprevista desta regulação pode ser condições de trabalho ainda piores para os processadores de peixes.

2) Sobrepesca de estoques
A segunda categoria diz respeito à proibição de subsídios para a pesca de estoques que sofrem com a sobrepesca. Como não é obrigatório determinar a situação do estoque de peixes, é difícil descobrir quando um estoque está submetido à sobrepesca. De qualquer forma, a definição do que é um “nível biologicamente sustentável” também é muito flexível: baseada em pontos de referência que podem incluir o conceito de “Rendimento Sustentável Máximo” ou métodos alternativos, que são utilizados no caso de setores pesqueiros pobres em dados. Além disso, as Organizações Regionais para o Ordenamento Pesqueiro (OROPs) como a Comissão Geral das Pescas do Mediterrâneo (CGPM) ou a Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico (ICCAT), ou outros Arranjos Regionais para o Ordenamento Pesqueiro (AROPs), podem decidir a situação de um estoque de peixes sem qualquer base em dados. Dessa forma, existe um apoio implícito à tomada de decisão política por parte desses órgãos. Isso significa que, por exemplo, se países suficientes que pescam no Mar Mediterrâneo quiserem continuar com os subsídios, eles podem declarar o estoque de peixes sustentável ou insustentável, independentemente da real situação do mesmo. Por fim, no caso do estoque de peixes ser considerado superexplorado, os subsídios podem continuar se forem subsídios considerados “bons” ou fizerem parte de um plano de longo prazo para recuperar o estoque a níveis sustentáveis.

3) Sobrepesca e supercapacidade
A terceira categoria diz respeito a subsídios que contribuem para a sobrepesca e a supercapacidade. Exemplos desses subsídios são aqueles para construir ou reformar embarcações de pesca, comprar máquinas e equipamentos para as embarcações, subsídios para combustíveis e outros que cobrem perdas de embarcações ou atividades relacionadas à pesca. Esta foi a parte mais significativa do projeto de Acordo. Ela também se relaciona diretamente à MDS 14.6.

O esboço do texto para negociação na MC12 continha uma proibição a subsídios que contribuem com a sobrepesca e a supercapacidade, mas esta foi em grande parte eliminada no acordo provisório finalmente adotado nas primeiras horas da sexta-feira, 17 de junho de 2022. Futuras negociações vão se concentrar em acrescentar cláusulas para subsídios que contribuam com a sobrepesca e a supercapacidade.

A desigualdade foi um grande problema. O texto preliminar foi redigido de forma que permitiu aos países mais desenvolvidos – os que mais subsidiam – continuar com os subsídios, enquanto os países em desenvolvimento, com menos capacidade, serão impactados se não tiverem os meios e recursos para justificar seus subsídios. O texto é flexível em relação aos subsídios à pesca artesanal em águas territoriais, ou seja, as primeiras 12 milhas náuticas medidas a partir da linha de base (que normalmente segue a costa, mas nem sempre, especialmente se há ilhas perto da costa). Contudo, a pesca artesanal foi definida como pesca de “baixa renda, pobre em recursos e voltada à subsistência”. Em outras palavras, os subsídios seriam protegidos apenas no caso de a pesca se destinar à própria subsistência, e de o pescador ter baixa renda e ser pobre em recursos. Na realidade, a maioria dos pescadores artesanais não serão cobertos por essa flexibilidade, uma vez que às vezes saem para mar aberto e também capturam peixes para a venda, não só para o consumo próprio.

Os países que mais subsidiam poderão continuar a oferecer incentivos de acordo com a chamada “flexibilidade para a sustentabilidade”, que permite a continuidade dos subsídios à pesca “sustentável” caso o país consiga demonstrar que está tomando medidas para manter um “nível biológico sustentável” do estoque de peixes em questão. Essas ‘medidas’ podem ser aquelas tomadas pelo próprio país, por outra nação, ou pelo A/OROP envolvido.

Para demonstrar isso, bastaria o país fornecer informações à OMC juntamente com uma notificação geral de seus subsídios, o que acontece em intervalos de 2 anos. Na prática, isso garantiria um período mínimo de subsídio por 2 anos.

Os países não precisam garantir que as “medidas” adotadas mantenham um “nível biológico sustentável”, mas sim que existam medidas implementadas, e que estas tenham a sustentabilidade como meta. A palavra “manter” parte da premissa de que o estoque de peixes em questão estaria em um nível biologicamente sustentável quando as medidas foram adotadas. Contudo, não exigiria que os membros demonstrassem a sustentabilidade dos estoques quando o subsídio foi implementado no início. Por definição, a situação do estoque se refere à situação histórica do estoque. O texto não esclarece a qual período a determinação da sustentabilidade biológica deve se referir. Tampouco exige que os membros forneçam as informações mais recentes, quando disponíveis. Então os países podem utilizar avaliações de estoque feitas anos antes, e que podem não refletir a situação atual do estoque de peixes.

A sustentabilidade não precisaria ser avaliada levando em conta o “estoque de peixes relevante”. A situação do estoque de peixes pode ser avaliada no nível das espécies, mas também de grupos de espécies, ou de todas as espécies. Manter a expressão “relevante” no texto sem definição permite muita flexibilidade. Por exemplo, se os níveis do estoque são biologicamente sustentáveis para 60 espécies, mas considerados superexplorados para 40 espécies, o total para as 100 espécies ainda pode ser considerado biologicamente sustentável. Contudo, na realidade, um membro poderia fornecer subsídios para a pesca  de até 40 espécies superexploradas.

A sustentabilidade das espécies que pertencem ao mesmo ecossistema, estão a ele associadas ou dependem dos estoques visados não seria considerada. Entretanto, a abordagem de ecossistema é considerada a melhor prática ambiental e tem sido incluída em várias regulações nacionais, como a Lei de Pesca da Nova Zelândia de 1996, entre outras. Um país que fornece subsídios para a captura e morte de golfinhos para manter os níveis de atum pode ser considerado sustentável.

 

O Acordo adotado na MC12 elimina a proibição do subsídio relacionado à sobrepesca e à supercapacidade.

Uma das principais exceções é a proibição de subsídios à pesca em alto mar em áreas que não estão sob a competência de uma OROP ou de um AROP, às vezes erroneamente chamadas de “alto mar sem regulamentação”, o que foi mantido no acordo adotado.

Infelizmente, pouquíssimas águas parecem estar cobertas por essa proibição, já que praticamente todos os mares estão dentro da competência de pelo menos uma A/OROP, com possíveis exceções como o alto mar do Oceano Ártico e uma pequena faixa entre as águas do Alasca. Pode-se argumentar, contudo, que essas áreas também são cobertas por AROPs. A “competência” de uma A/OROP não equivale a manejo ou sustentabiliadde. Por exemplo, países como o Reino Unido estão pescando a merluza da Patagônia numa área sob competência da Convenção para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos (CCAMLR), pois as partes não chegaram a um acordo sobre os limites de captura.

O acordo adotado também reduz algumas das exigências de notificação. Ele elimina a proposta apresentada pela Índia que cobriria os subsídios aos combustíveis, que beneficiam a pesca mas também são fornecidos a outros setores (ex.: para todas as embarcações, incluindo navios de contêiner ou outros setores da economia), os chamados subsídios “não específicos” para a compra de combustível.

 

No geral, o resultado do acordo mais enxuto é similar às disposições do texto preliminar – o resultado final de ambos os textos é que o grosso dos subsídios à pesca podem continuar. Membros da OMC se comprometeram a dar continuidade às negociações para acrescentar mais cláusulas, inclusive sobre a sobrepesca e a supercapacidade, para ter “diretrizes abrangentes” que respondam à MDS 14.6.

O acordo atual ainda precisa ser ratificado. Uma vez que entrar em vigor por meio da ratificação de 2/3 dos integrantes da OMC, ou seja, 109 membros (a UE conta como 28), o acordo irá, contudo, deixar de existir se, quatro anos depois de entrar em vigor, não se alcançar um acordo sobre diretrizes mais abrangentes. Isso pode inicialmente ser um obstáculo à ratificação, já que os parlamentares serão convidados a ratificar um acordo parcial sobre o qual as negociações ainda estão em andamento. Como resultado, poderemos ter um acordo que ficará “pairando no ar”. Só o tempo dirá.

O fato de que os membros da OMC conseguiram chegar a um acordo sobre subsídios à pesca é elogiável. Contudo, dificilmente pode-se afirmar que este acordo vai salvar os peixes no mundo, nem que apoiará e acelerará a transição para a sustentabilidade. A continuidade dos subsídios trará lucros para a pesca de grande escala, deixando de lado os pescadores artesanais. O mundo provavelmente testemunhará maior esgotamento dos estoques pesqueiros e degradação dos recursos marinhos, o que prejudicará a subsistência dos pescadores tradicionais e comunidades costeiras.