A luta das mulheres da pesca artesanal pelo direito à Alimentação e à Nutrição: Desafios e estratégias de enfrentamento das mulheres de Uganda e do Malawi

“A menos que as desigualdades da pesca de pequena escala sejam combatidas, o Dhana não será uma realidade para as mulheres da pesca artesanal e suas famílias.”

A SITUAÇÃO DAS MULHERES DA PESCA ARTESANAL NA ÁFRICA

Na África, 10 a 19 milhões de pessoas dependem diretamente da pesca para seu sustento e outras 90 milhões se beneficiam dela mais amplamente. Embora dificilmente reconhecidas, em todo o continente, as mulheres desempenham um papel fundamental na cadeia de valor da pesca. Apesar de algumas mulheres hoje possuírem barcos de pesca e estarem diretamente envolvidas na atividade, 96% do trabalho das mulheres na pesca de pequena escala ainda acontece nas atividades pós-captura, como o processamento, a secagem ao sol, a defumação e o comércio de peixes. Além de seu papel na pesca de pequena escala, culturalmente ainda se espera que as mulheres sejam responsáveis por uma ampla variedade de papéis e deveres relacionados a obrigações sociais e econômicas dentro de casa, bem como em suas comunidades. Alguns exemplos dessas expectativas incluem, entre outros, o trabalho reprodutivo e de cuidado, que envolve a atenção às crianças, aos mais velhos e aos doentes, tarefas domésticas e a obtenção de alimentos para cozinhar para a família.

Apesar do extenso engajamento das mulheres na cadeia de valor da  pesca e em outros papéis socioculturais de gênero, elas com frequência são marginalizadas. As mulheres da pesca artesanal não recebem a devida atenção e são deixadas de fora dos processos de decisão. As mulheres e suas necessidades são excluídas dos debates de políticas sobre a pesca, o que frequentemente leva à sua marginalização. É importante notar, contudo, que as mulheres da pesca têm conhecimento, experiências e aspirações singulares para sustentar seu meio de vida. Reconhecer e combater essas desigualdades de gênero, bem como aplicar uma abordagem baseada em direitos humanos aos principais desafios e injustiças estruturais enfrentadas pelas mulheres que trabalham na pesca artesanal, é indispensável para a realização do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas (Dhana) das comunidades pesqueiras, especialmente das mulheres.

 

Criminalização dos pescadores e seu impacto sobre as mulheres
Em Uganda, uma diretriz presidencial aprovada em 2017 – para permitir que o Exército intervenha e assuma o controle da pesca ao longo da costa do maior lago pesqueiro de Uganda – piorou a situação dos pescadores. A diretriz teve e ainda tem um forte impacto nas comunidades pesqueiras, especialmente para as mulheres. Isso levou a casos de criminalização de pescadores, com implicações sociais. Por exemplo, em uma comunidade pesqueira no distrito de Mukono, o Exército confiscou um barco e equipamentos de pesca de uma pescadora sob o pretexto de que ela não estava cumprindo as regulações de pesca. Ela então teve de pagar uma “fiança” de UGX 1,5 milhão (aproximadamente USD$ 400, ou R$ 2.085) para ser solta, mas enquanto isso, equipamentos essenciais do barco foram pilhados. Ela não conseguiu retomar as atividades de pesca – sua principal fonte de sustento –, o que colocou em risco o Dhana dela e de sua família.

Há também muitos casos de prisões e acusações contra pescadores por usarem redes de aço, que são classificadas como “métodos de pesca ilegais” pelo Exército. Contudo, as redes de algodão e os equipamentos de pesca exigidos por lei são caros (aproximadamente USD$ 3.500, aproximadamente R$ 18.245), e simplesmente inacessíveis para muitos pescadores. Por outro lado, as redes de aço são mais baratas e estão prontamente disponíveis no mercado apesar de serem ilegais, uma vez que o governo continua permitindo sua importação. Essas prisões de pescadores sobrecarregam ainda mais as mulheres que, além de suas atividades de cuidado, têm que lutar para libertar membros da família presos.

Além disso, com o aumento das prisões e a militarização do lago, muitos pescadores tentam evitar serem presos pelo Exército, e migram de uma comunidade para outra. Lá, eles estabelecem novas famílias e abandonam as mulheres que deixaram nos locais antigos com poucas opções para migrar. Além disso, as mulheres revelam com tristeza que, em alguns casos de vulnerabilidade, às vezes têm de batalhar pelos poucos peixes disponíveis oferecendo sexo aos donos dos barcos e às tripulações, para não serem obrigadas a pagar um preço muito mais alto pelo peixe de que precisam para sustentar seu meio de vida e alimentar seus filhos. Para piorar, as mulheres frequentemente têm de suportar muita violência de gênero, que aumentou principalmente durante a pandemia de Covid-19 em várias partes do país.

Acesso à terra – igualmente importante para os pescadores artesanais
Além dos desafios relacionados à pesca, as mulheres das comunidades pesqueiras geralmente têm acesso limitado à terra. O Departamento de Estatísticas de Uganda (UBOS) indica que apenas 38,7% dos proprietários de terra são mulheres. Além disso, 66,7% da terra de propriedades rurais em geral são terras tradicionais, que embora legítimas, ainda são contestadas por não terem proteção legal do Estado. Embora isso seja comum em todo o país, a situação é pior entre as comunidades pesqueiras porque as mulherse têm pouco acesso à terra, o que é vital para suas atividades pós-pesca, tais como secar os peixes ao sol. As mulheres das comunidades pesqueiras também precisam de terra para plantar alimentos para alimentar seus filhos, especialmente devido ao acesso reduzido que têm aos peixes. Além desses problemas práticos, as mulheres são ainda mais marginalizadas devido ao pluralismo jurídico por trás do sistema de propriedade da terra, que aplica tanto leis formais quanto informais, apesar de estas com frequência se contradizerem.

Acusações de bruxaria e caça às bruxas
As mulheres das comunidades pesqueiras, como em outros lugares do país, costumam estar envolvidas em relacionamentos informais que não são reconhecidos como casamentos legais pelas leis de Uganda. O movimento constante de homens entre as comunidades em busca de peixes e para fugir do Exército aumenta a probabilidade de relações familiares informais. Isso torna as mulheres ainda mais vulneráveis e as coloca em desvantagem nas questões dos direitos matrimoniais à propriedade. A Lei de Sucessão que regula a herança é injusta desde o início, já que define porcentagens diferentes para a herança de acordo com o sexo, segundo o sistema patrilinear ainda dominante em Uganda.

Outro desafio significativo que é quase exclusivo das mulheres da pesca artesanal está relacionado às acusações de bruxaria contra aquelas que prosperam. Essa suposição é levantada para explicar o sucesso de algumas mulheres num contexto em que muitas vivem na miséria e na pobreza. Tais acusações resultaram na maioria das vezes na expulsão dessas mulheres de suas próprias comunidades depois de serem submetidas em muitas ocasiões a violência física e privação dos seus meios de produção, como barcos de pesca. Quando a comunidade tem a impressão de que alguém pratica a bruxaria, acredita-se que a pessoa tenha capacidades sobrenaturais de realizar ações maldosas, incluindo causar dor, doença, infortúnio e morte. A pobreza e a falta de oportunidades para ganhar a vida nas comunidades pesqueiras agravaram as práticas de caça às bruxas que normalmente se voltam contra mulheres bem-sucedidas, especialmente aquelas com pequenos negócios que prosperam.

Um caso desses (durante a pandemia de Covid-19) foi o de Teopista Komakech. Teopista é uma pescadora que viveu na comunidade de Buzindeere durante os últimos 20 anos. Ela foi rejeitada e expulsa de sua aldeia, e a comunidade confiscou todos os seus pertences. Membros da comunidade usaram seu barco e motor como caução para levantar dinheiro e contratar os serviços de um feiticeiro para “limpar” a comunidade das supostas práticas de bruxaria. Teopista narra que inicialmente pediu dinheiro emprestado para conseguir um barco de pesca, o que permitiu que ela educasse seus seis filhos (quatro meninas e dois meninos) graças ao trabalho duro. Enquanto isso, muitas crianças da comunidade estavam deixando a escola. Uma das acusadoras alega que sua filha engravidou devido às magias de Teopista depois que a menina concluiu a escola primária. Outras afirmam que seus filhos ficaram doentes, enquanto os de Teopista permaneciam saudáveis por causa da magia. Como as acusações de bruxaria costumam ser voltadas para as mulheres, ninguém da comunidade acusou o marido de Teopista. Ao contrário, os membros da comunidade sempre sustentaram a inocência dele. O exemplo de Teopista não é um caso isolado: muitas mulheres da pesca em Uganda são submetidas ao mesmo tratamento.

 

 

Como em Uganda, a pesca no Malawi é culturalmente considerada uma atividade para homens, e espera-se que apenas eles estejam envolvidos nela de forma direta. Embora algumas mulheres possam querer participar ativamente da pesca, elas são impedidas por normas culturais e papéis de gênero. Como uma mulher de uma comunidade pesqueira em Ngara (parte norte do Lago Malawi) explicou: “a mulher pode até ter equipamento de pesca, mas é difícil para ela assumir o controle, há muitos mitos e crenças contra a participação ativa das mulheres na pesca. Mesmo que você tenha equipamento de pesca, você sempre permite que os homens assumam o controle.” As mulheres que possuem equipamentos também relatam enfrentar desafios ao coordenar pescadores que, na maioria, são homens.

Mulheres trabalham no processamento dos peixes, mas os homens dominam os mercados urbanos
Com base no exposto acima, as mulheres da pesca artesanal se envolvem principalmente com o processamento de peixes, e vendem sua produção num mercado que é amplamente desregulado. De fato, não há mercado formal e preços estabelecidos para os peixes. Isso prejudica indevida e desproporcionalmente os processadores e peixarias que são, na maior parte, mulheres. Sem informações sobre as rápidas mudanças de preços nos mercados urbanos, os pescadores (que são predominantemente homens) tendem a cobrar preços mais altos pelos peixes. Em Nkhata Bay/Tukombo em Nkhata Bay e Ngara em Karonga, as mulheres da pesca relatam que as pessoas que chegam para comprar usipa (um peixe local) no lago vêm de lugares tão distantes quanto a Zâmbia. Quando a concorrência está alta, os preços de usipa aumentam e reduzem as margens de lucro para os atores (mulheres) que estão abaixo na cadeia de valor. Uma mulher dona de uma peixaria no Mercado Mzuzu lamentou: “nós não ganhamos nada com nossa usipa porque os preços estão muito altos no lago, uma vez que competimos com compradores da Zâmbia que têm um poder aquisitivo muito maior que o nosso. A moeda deles, o Kwacha Zambiano, é mais forte do que o Kwacha do Malawi”.

Outro desafio está relacionado ao problema de infraestrutura inadequada ou ausente nos mercados. Muitas mulheres não têm acesso a estandes nos mercados urbanos. Embora estudos tenham mostrado que a maioria dos comerciantes de peixe são mulheres, a maioria dos vendedores que possuem estandes nos mercados urbanos do país são homens. A maior parte das mulheres é obrigada a vender em lugares inconvenientes como nas ruas, onde não conseguem vender muito. Além dessas questões relacionadas ao acesso aos estandes nos mercados, outro problema é o acesso a espaço de armazenamento. A maioria das vendedoras urbanas de peixes não tem acesso a armazenamento e é obrigada a vender a usipa logo ao chegar, mesmo que os preços estejam baixos. As peixarias do Mercado Mzuzu reclamam que, se não vendem a usipa em um dia, então são obrigadas a deixá-la do lado de fora, na rua, e o peixe com frequência é roubado.

Além disso, a falta de acesso ao capital é outro gargalo para as mulheres da pesca artesanal. Empréstimos só são acessíveis para aqueles que já estão melhor de vida, ou seja, aqueles que já têm equipamentos de pesca, que podem ser usados como caução. Muitas mulheres que gostariam de participar ativamente da pesca não conseguem por não terem acesso a empréstimos, uma vez que não possuem bens de garantia. As mulheres da pesca artesanal lamentam que embora algumas organizações tenham começado a oferecer empréstimos, isso não contemplou as mulheres. Os empréstimos são dominados pelos poderosos. Quando há dificuldades para pagá-los, ou não há fundos para manutenção ou reparo dos barcos, os mais abastados usam seu dinheiro e acabam controlando o barco.

 

 

Os exemplos de Uganda e Malawi mostram que, apesar da grande contribuição das mulheres à pesca, uma ampla variedade de fatores impacta seus meios de vida. Entre esses fatores estão o fardo do trabalho reprodutivo e de cuidado; papéis de gênero prescritos manifestos em dificuldades e estereótipos culturais e sociais; falta de acesso à terra e a garantias; e barreiras estruturais que impedem sua participação ativa na pesca de pequena escala e tenham uma contribuição maior. Apesar da quantidade de desafios, as mulheres da pesca artesanal em toda a África não são apenas vítimas passivas. Elas lutam e continuam exercendo sua agência para influenciar positivamente suas comunidades. 

Em Uganda, as mulheres da pesca artesanal assumem a liderança na mobilização de suas comunidades para introduzir discussões sobre as ameaças aos direitos humanos e intimidações que vêm de todos os lados. No distrito de Mukono, as mulheres mobilizaram mais de 40 comunidades pescadoras para treinamentos em direitos humanos em 2021, conduzidos pela FIAN Uganda em parceria com o Katosi Women Develpment Trust (KWDT) e a Rede de Advogados pelo Interesse Público (NETPIL). Vários treinamentos continuam empoderando mulheres e outros membros da comunidade com conhecimentos relativos aos direitos humanos e ao papel do Estado como detentor de deveres em melhorar as condições de vida dessas comunidades. Nesse processo, as mulheres se mobilizaram e estão demandando a realização de seus direitos humanos, por exemplo, escrevendo cartas para os Membros do Parlamento (Mps) e líderes em várias esferas. Por meio da organização guarda-chuva KWDT, elas adquiriram barcos e equipamento de pesca de tamanhos aceitáveis para pescar juntas em grupos, e assim enfrentar a dificuldade de comprar barcos e equipamentos de pesca sozinhas. As mulheres ainda se encorajaram a ir encontrar seus Mps para expressar suas visões e posições sobre leis injustas.

No Malawi, as mulheres tampouco são vítimas silenciosas das desigualdades sistemáticas. Na praia Chilumba, em Karonga, mulheres que processam pescados se mobilizaram e se organizaram para formar um grupo que implementou iniciativas regulatórias e políticas locais voltadas a aumentar sua participação. Atenção particular foi dada à participação das mulheres no comércio de usipa na praia onde há uma concorrência desleal e crescente entre homens e mulheres pelo acesso ao processamento e à venda do peixe no varejo. Por meio de uma nova inicicativa regulatória e política, apenas moradores locais podem comprar usipa diretamente dos pescadores e processadores locais. Com menos concorrência dos comerciantes de fora, os preços podem ficar mais acessíveis para os processadores – em sua maioria mulheres – e podem consequentemente aumentar as margens de lucro. As mulheres da pesca artesanal também estão se mobilizando e organizando associações locais de poupança e empréstimo – uma forma de microfinanciamento para diminuir o problema do acesso ao capital.

A menos que as desigualdades da pesca de pequena escala sejam combatidas, o Dhana não será uma realidade para as mulheres da pesca artesanal e suas famílias. Uma abordagem baseada em direitos humanos é a chave para proteger as mulheres contra costumes e práticas injustos em vários níveis. Há uma grande necessidade de políticas e programas que apóiem as mulheres da pesca artesanal para que elas acessem recursos de modo a superar tanto as barreiras estruturais quanto culturais e possam se engajar efetivamente para contribuir como agentes em seu meio.