A corrida dos 30x30 pela conservação: um dilema para os pescadores artesanais?

“… o que é de fato necessário é o fortalecimento de abordagens baseadas em direitos que combatam as ameaças num contexto sensível às questões geográficas, econômicas e culturais. Mas o 30x30 é uma solução política muito mais fácil: ele soa bem, cabe num meme, faz todo mundo pensar que muita coisa está sendo feita, de forma que os negócios possam continuar como sempre”

Separar 30% da superfície do planeta para a conservação até 2030, estratégia também  conhecida como “30x30”, tornou-se talvez a frase de efeito que mais ressoa nos círculos conservacionistas globais. Até julho de 2022, mais de 100 países tinham entrado para a Coalizão de Alta Ambição pela Natureza e as Pessoas (HAC, na sigla em inglês), um grupo de Estados reunidos em torno da meta de 30x30, que inclui todos os países do G10. A campanha está sendo conduzida por fundações de conservação ambiental e cientistas afiliados, bem como por corporações e instituições financeiras que defendem um new deal global em prol da natureza.[1] Em resumo, a ambição declarada da coalizão é conectar o Acordo de Paris à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), numa tentativa de combinar a proteção à biodiversidade marinha e terrestre com a ação contra as mudanças climáticas. Existe grande expectativa de que o 30x30 seja endossado formalmente quando as partes da CDB se reunirem para adotar uma estratégia global para a biodiversidade (GBF, na sigla em inglês) pós-2020 em Montreal em dezembro de 2022.

Ainda é muito incerto se esta será uma meta realista ou não. Sua aparente simplicidade esconde a falta de um acordo sobre o grau de proteção (ou exclusão) que se demanda, e se ela deve ser aplicada por todos os países igualmente. Quase todas as metas estabelecidas por governos para o meio ambiente no passado fracassaram. Na verdade, as metas de Aichi, acordadas pelo CDB em 2010, estabeleceram o objetivo de criar uma cobertura de 10% de áreas marinhas protegidas (AMP) até 2020. Globalmente, esta meta quase foi atingida (8%), mas a diversidade de resultados entre os países e contextos dificilmente apoia a extensão da mesma estratégia. Questões efetivas de implementação ou de localização apropriada das AMPs parecem ter sido negligenciadas. O que faz com que a nova meta muito provavelmente fracasse é o fato de que grandes países costeiros não aderiram à HAC, entre eles Brasil, China, Rússia e Indonésia. Contudo, além da questão da viabilidade, existem também questões urgentes quanto à conveniência da campanha 30x30. Isso é particularmente importante da perspectiva do grande número de pescadores artesanais cujos modos de vida podem ser ameaçados pelo rápido crescimento das AMPs.

A conversa que se segue entre Felix Mallin e Hugh Govan detalha algumas das implicações de uma meta global de 30% para os oceanos e o que pode estar em risco para os pescadores artesanais e outras comunidades costeiras em termos de acesso aos recursos marinhos e controle sobre os mesmos.

Felix Mallin [FM]: Hugh, muito obrigado por dedicar seu tempo a compartilhar suas opiniões sobre o 30x30. Você pode dizer algumas palavras gerais sobre como vê o mérito de proteger a biodiversidade e mitigar os efeitos das mudanças climáticas por meio de Áreas Protegidas e ferramentas de manejo baseadas em áreas? E até que ponto é inteligente aumentar repentinamente essas ferramentas para 30% do espaço planetário num período de alguns anos?

Hugh Govan [HG]: As Áreas Protegidas podem ser instrumentos eficazes para o manejo sustentável da biodiversidade, dos estoques de pesca, ou mesmo de valores culturais. A espécie humana tem milênios de experiência trabalhando com elas. Nas circunstâncias certas, elas são, sem dúvida, uma ótima ferramenta. Dito isto, a biodiversidade está integrada à atividade humana e à provisão de alimentos em todos os níveis. Às vezes para o bem, às vezes para o mal, mas ela está sempre entrelaçada em complexas relações socioecológicas. Em outras palavras, você não pode ter certeza de que, puxando um fio, não afetará a coisa toda. Com 30%, estamos falando sobre uma ampla variedade de habitats: de desertos, florestas e montanhas a mangues, recifes e mares abertos. É impossível afirmar que exista uma ferramenta que deve abranger a mesma proporção de todos esses habitats no mundo inteiro. Os diversos países que agora serão cobertos com os 30% têm sistemas distintos de governança, diferentes dependências nutricionais de seus próprios recursos, e seus respectivos ecossistemas estão em situações muito diferentes. Então, era de se esperar que a confecção de abordagens para o manejo da biodiversidade levasse em consideração cada caso, quer em terra habitável ou no mar aberto.

FM: Falando dos ambientes marinhos, quando pensamos no espaço oceânico, há enormes diferenças geográficas e socioeconômicas entre as nações costeiras e insulares. 30% significa uma coisa para países como a França, Reino Unido ou os Estados Unidos, uma vez que esses países controlam milhões de milhas quadradas de Zonas Econômicas Exclusivas que são remanescentes de seus domínios coloniais. Compare isso a outros apoiadores do HAC, como a Índia, o Camboja ou o Senegal, onde o acesso livre a lagos e oceanos é vital para milhões de pescadores artesanais. Será que os países do Sul não estão assinando algo que trará obrigações e consequências impensadas?

HG: É importante notar que a meta, se adotada na reunião do CDB em dezembro, não será uma decisão baseada em considerações científicas cuidadosas. Como os defensores do 30x30 admitem abertamente, trata-se de uma barganha política. O Norte está propondo uma ideia e o Sul negociará para conseguir o melhor acordo possível. Teoricamente, o Sul deveria estar numa posição mais forte porque a maior parte da biodiversidade remanescente, incluindo os estoques globais de peixes, pertence a eles. Ainda assim, preocupa o grande risco de que a decisão final possa ser influenciada por uma divulgação positiva e atraia novos dólares de grandes doadores para a conservação. As recentes e controversas trocas de dívida-por-oceano, por exemplo, ilustram como os governos podem se comprometer com promessas ambientais dúbias quando estas estão atreladas a soluções de curto prazo para uma crise de dívida nacional. Sei de vários países que endossaram formalmente o 30x30, nos quais integrantes dos governos estão extremamente desconfortáveis com a ideia. Para os líderes políticos, é uma oportunidade de financiamento e prestígio que não querem dispensar. No entanto, para aqueles que precisam traduzir e implementar isso nacional e localmente, é um desastre em potencial com efeitos colaterais que vão desde a implementação de estratégias de manejo ambiental existentes até mais tensões em orçamentos já apertados. Estudos de especialistas em países africanos e outras nações em desenvolvimento são muito claros ao enfatizar que há questões de manejo ambiental que precisam ser tratadas antes que o 30x30 possa se tornar uma contribuição útil para a proteção da biodiversidade. No nível mais básico, isso diz respeito a  órgãos governamentais com financiamento e pessoal adequados responsáveis pela pesca ou conservação ambiental. Sem essa estrutura básica de governo, a meta de 30% provavelmente resultará numa inflação de novos “parques de papel”; ou seja, áreas que são designadas legalmente, mas que não têm manejo efetivo. Por fim, acredito que esse foco no 30x30 pode significar que os órgãos governamentais terão de fazer cumprir uma meta relativamente sem sentido, quando não são capazes nem mesmo de executar prioridades cruciais relativas à poluição oceânica gerada pelas indústrias ou às Avaliações de Impacto Ambiental e aos planos de manejo. Além disso, também é provável que isso enfraqueça os modelos locais de conservação e resulte em mais restrições de direito de acesso a pescadores artesanais, que serão involuntariamente compelidos a revogar sua soberania alimentar em favor de um documento internacional, sem receber compensação adequada ou providências alternativas. Se continuar a tendência que vimos nas últimas três décadas, isso poderá na realidade alimentar o ciclo vicioso de contrabando, pirataria e criminalização de pescadores.

FM: Agora, para alguns líderes, nem mesmo o 30x30 é suficiente. Numa atitude clara para agradar grandes doadores filantrópicos e celebridades do oceano presentes na sala, o extrovertido presidente da Colômbia Iván Duque elogiou seu país por assumir uma abordagem de “30 antes de 30” na recente Conferência dos Oceanos em Lisboa, o que ele louvou como um imperativo moral: “isso não é político, não é ideológico, é em prol da humanidade”. Enquanto estava em Lisboa, na verdade ele se esquivava da cerimônia de divulgação do muito aguardado relatório da comissão da verdade de seu país. Fica claro que líderes impopulares em seus próprios países gostam de defender o meio ambiente no palco internacional, especialmente quando isso pode ajudá-los a garantir um confortável posto na ONU depois de seus mandatos. Isso nos traz à atual campanha de lobby pelo 30x30 e à questão da legitimidade. Tanto as justificativas ecológicas quanto econômicas do acordo estão sendo formuladas por um certo milieu científico situado nas partes afluentes do mundo. Por outro lado, as potenciais repercussões sociais e econômicas da meta não foram submetidas aos devidos debates parlamentares ou processos consultivos na maioria dos Estados. Os defensores do 30x30 estão cientes dos potenciais riscos da campanha, que é caracterizada por uma abordagem apressada e feita de cima para baixo?

HG: Há conservacionistas genuínos que ainda acreditam que o modelo de fortalezas de conservação (exclua os humanos e tudo ficará bem) é do que o planeta precisa. Além disso, a experiência dos últimos 40 anos mostrou a eles que fazer lobby diretamente com governos é muito mais eficaz do que passar pelos processos democráticos. Um cínico poderá dizer que eles tiraram essa estratégia do mesmo livro dos capitalistas que causaram a destruição no planeta em nome do lucro. Essa arrogância política é especialmente acentuada no florescente setor financeiro da conservação. Portanto, um problema comum que os pescadores artesanais enfrentam é que, quando novas regulações ambientais ou AMPs vedadas à pesca são introduzidas, elas geralmente são impostas; o que afeta de maneira desproporcional aqueles que já vivem em circunstâncias precárias e que muitas vezes têm meios limitados de participação política. Enquanto isso, os usuários verdadeiramente problemáticos tais como a pesca industrial, o petróleo ou o gás, são poupados. Isso não surpreende, uma vez que eles têm muito mais ligações tanto com governos quanto com doadores da conservação. Falando em legitimidade, o que é de fato necessário é o fortalecimento de abordagens baseadas em direitos que combatam as ameaças num contexto sensível às questões geográficas, econômicas e culturais. Mas o 30x30 é uma solução política muito mais fácil: ele soa bem, cabe num meme, faz todo mundo pensar que muita coisa está sendo feita, de forma que os negócios possam continuar como sempre.

FM: Ainda assim, há facções de cientistas da conservação que sustentam que as AMPs vedadas à pesca foram muito eficazes na conservação da biodiversidade, e na verdade muito mais do que o manejo da pesca. Eles alegam que este é o caminho mais promissor para restaurar os ecossistemas e que as AMPs têm efeitos que repercutem na pesca e na biodiversidade de áreas adjacentes. Há um consenso científico sobre esta visão?

HG: Bem, há muitos estudos sobre sistemas de recifes de corais e outras áreas costeiras que mostram uma ampla variedade de resultados. Se implementadas efetivamente, então a biodiversidade provavelmente será protegida dos impactos do extrativismo e, em alguns casos, isso pode permitir a recuperação e reprodução dos estoques de peixes, contribuindo para a pesca costeira. Mas este consenso científico não se dá de forma alguma sem muitas ressalvas sobre a localização das AMPs, se elas combatem outras ameaças, e especialmente se são implementadas de fato. Todas essas preocupações se agravam com o tamanho da área protegida. Temos dados e estudos para mostrar que manejar estoques migratórios de espécies como o bonito por meio das chamadas AMPs de grande escala não é uma opção econômica. Além disso, a maior parte dos impactos negativos sobre a biodiversidade não acontece necessariamente dentro das áreas designadas para proteção e provavelmente são muito mais complexos de se tratar. Além disso, elas só funcionam se apoiadas por investimentos consideráveis em coisas que não são muito atraentes para os doadores filantrópicos e agências de auxílio, tais como apoiar o funcionamento cotidiano dos governos com orçamentos, políticas públicas e trabalho anticorrupção. Então, para os governos do Sul preocupados com a biodiversidade, que desejam manter sua independência dos doadores mas ao mesmo tempo precisam gerar renda com a pesca, seria uma má ideia fechar os 30% em vez de optar por abordagens de manejo mais econômicas. Por exemplo, sem assistência externa, os nove Estados signatários do Acordo de Nauru, no Pacífico, situados na principal área de circulação do atum bonito, implementaram seu próprio sistema de manejo, que, segundo todos os relatos, tornou-se o mais sustentável de pesca de atum no mundo. Em Tuvalu, o enorme crescimento na arrecadação de impostos permitiu que o governo aumentasse os gastos com a governança local em comunidades insulares mais distantes.

FM: Isso parece muito promissor. Na verdade, mais recentemente, pelo menos nos trabalhos acadêmicos e na retórica política, podemos testemunhar uma amplificação das ideias de conservação marinha focadas em justiça social e com base nas comunidades. Qual você acha que é a perspectiva atual para os pescadores artesanais e como eles podem se posicionar melhor nesse debate?

HG: Os benefícios mútuos entre o respeito aos direitos de acesso dos pescadores artesanais e a saúde global dos oceanos estão bem estabelecidos. Isso foi reiterado na declaração recente que fizeram após a frustrante Conferência dos Oceanos da ONU, em que outros atores tentaram repetidamente instrumentalizar as vozes dos pescadores artesanais e comunidades indígenas para seus próprios fins. Normalmente, os pescadores artesanais são muito pragmáticos sobre como o uso sustentável pode contribuir para a conservação da natureza, bem como para sustentar seus modos de vida e conservar os estoques de peixes para a população. Essa abordagem utilitária não é necessariamente bem aceita por alguns conservacionistas, e embora ela possa refletir um uso mais sábio e sustentável, e a tutela dos recursos costeiros, digamos, por parte de povos indígenas, ela também pode refletir o interesse próprio das comunidades ou pescadores em manter os recursos costeiros que proveem seu sustento. Mas ter de acomodar, por imposição externa, uma proporção interditada ao uso em suas áreas de pesca, ou qualquer outro tipo de rigidez no que, de outra forma, poderia ser um manejo adaptável, será um fardo ainda maior para situações já complicadas. Confederações de pescadores do Pacífico, por exemplo, há muito pedem modelos de 100% de manejo. Tais modelos atendem a todas as exigências. Infelizmente, eles ainda parecem complicados demais e politicamente pouco atrativos para ganhar o apoio de líderes, em comparação a simplesmente dizer: vamos fechar 30% do oceano, especialmente se podemos contar partes dos oceanos que ninguém vê. Em suma, pode ser politicamente benéfico para a defesa dos pescadores artesanais estabelecer alianças mais fortes com as lutas pela biodiversidade terrestre. Acredito que as pessoas se interessariam muito mais pelo debate se percebessem que os 30% se aplicam também à terra. Quando os proprietários de terras começarem a se perguntar: qual terço da minha terra será proibido para uso particular, então evitar a consulta e a discussão será cada vez mais difícil.
 

[1] O autor principal do estudo financiado pela Fundação Rockefeller em 2020, que propõe a meta de 30x30, foi cientista chefe do World Wildlife Fund e atualmente é diretor da Resolve, uma consultoria sem fins lucrativos com sede em Washington que leva “conhecimento em política, estratégia e comunicações, e redes, capital semente e finanças de impacto para seus parceiros de projetos”, que incluem mineradoras transnacionais, como a Rio Tinto.